sábado, 20 de novembro de 2010

Violência contra crianças e adolescentes negros: uma abordagem histórica.

O PERCURSO HISTÓRICO
Climene Laura de Camargo; Eloina Santana Alves; Marinalva Dias Quirino


A violência praticada contra crianças e adolescentes negros não é um acontecimento novo no Brasil. Desde o período colonial até os nossos dias, essa parcela da população vem sendo espoliada, oprimida, negligenciada, ou seja, sofrendo as conseqüências da violência sob todas as formas que esta pode incidir sobre uma pessoa e/ou comunidade.
Historiadores têm descrito o fenômeno da violência contra crianças e adolescentes nos diversos períodos da história do Brasil, permeando a formação da sociedade brasileira.
Durante o período colonial, "a catequização dos índios" funcionou como um adestramento desta população à imposta cultura portuguesa, o que aconteceu às custas de índias sendo violentadas, portugueses explorando sua força de trabalho, seus corpos e alienando suas consciências. Posteriormente, com a chegada dos escravos, também subjugados aos seus senhores, refletindo uma realidade não menos trágica: eram tratados de maneira brutal, relegados à condição de objetos, tendo ignorada a sua condição de seres humanos, sendo vítimas das mais atrozes formas de violência. E da miscigenação desses indivíduos formou-se a população brasileira.
"Os filhos do Brasil foram gerados na violência, alimentados na malquerência, paridos no desespero e usados como combustível nos engenhos. Somos filhos da violência e do estupro. O Brasil é o resultado da prodigiosa multiplicação de uns poucos europeus brancos e de uns contatos africanos sobre milhões de corpos de mulheres indígenas seqüestradas e violentadas. Os filhos do Brasil não são o fruto mimoso de uma história de amor".9
Quando enfocamos o sistema escravagista, identificamos também o período em que foi impetrado o maior e mais cruel tipo de violência contra a infância e a adolescência.
Já no próprio ventre as crianças negras iniciavam uma vida de opressão, pois a maternidade em muitos casos era uma arma contra a fome e a miséria, como pode-se perceber no seguinte texto: "Com poucas exceções, todas as jovens negras não têm outra preocupação além de ser mãe. É uma idéia fixa, que toma conta de seu espírito desde que se tornam núbeis, e que realizam assim que têm ocasião... Na verdade, a maternidade não as levará com toda a segurança ao bem-estar, às satisfações do amor-próprio, ao usufruto da preguiça à coqueteria e à gulodice? Uma ama-de-leite é alugada por mais que uma engomadeira, uma cozinheira ou uma mucama. Para que dê honra e lucro, colocada numa boa casa, o senhor, durante a gravidez, lhe reserva os trabalhos mais leves. Após o parto, a rapariga vê suas camisas destruídas e suas roupas velhas distribuídas aos companheiros, enquanto seu guarda-roupa é renovado e recebe enxoval novo. É uma roupa grosseira, mas bem feita, vestidos simples a que a senhora, se os meios lhe permitem, colocou dois ou três metros de renda comum, e um vestido branco com seis babados, realização do sonho dourado constante das jovens negras. Eis o primeiro benefício da maternidade".10:31
Ao nascerem, muitas das crianças, filhas de mulheres escravas, foram abandonadas, como pode ser identificado em relatos de viajantes: pelo fato de "...muitos expostos serem filhos de escravas cujos senhores não querendo ter trabalho, nem fazer gastos com a criação de negrinhos, ou precisando das mães para amas, obrigaram-nas a abandoná-los na enjeitaria...".11:179
As "enjeitarias" ou Rodas dos Expostos, instituições criadas a partir do século XVII para abrigar crianças abandonadas, quase sempre foi um albergue de crianças negras.
Os estudos da demografia da história revelam que a distribuição das crianças expostas na roda de Salvador, de acordo com a etnia, acompanhou, de certa forma, as mudanças na composição da população da cidade, ao longo dos séculos XVIII e XIX. A população da cidade no século XVIII era majoritariamente branca, sendo 39% de pardos e negros. A entrada maciça de escravos africanos no mercado de Salvador, particularmente no período que vai da repressão britânica ao tráfico negreiro até a sua extinção, aumentou fortemente. Como conseqüência, houve aumento da presença de negros e mulatos na cidade, o que pode ser observado nos dados do censo de 1872 onde aponta que 72% da população era composta por pardos e pretos. Essa mudança na composição étnica da população de Salvador refletiu-se nas mudanças da composição dos expostos da Roda. No século XVIII os enjeitados eram predominantemente brancos. No final do século XIX eram quase integralmente mulatos e pretos. Compreender, portanto, como viviam e morriam estas crianças colocadas nas Rodas dos Expostos em nosso país, é uma maneira de nos aproximarmos da violência real e da violência simbólica vividas por crianças e adolescentes negros através dos séculos e que continua a perpetuar-se sob várias maneiras até os dias atuais.11
A descrição sobre a vida de crianças no Asilo dos expostos na cidade de Salvador, expõe esta triste realidade. Muitas destas crianças identificadas e registradas nessas instituições, morriam tão logo davam entrada. De acordo com os médicos da época, as causas dos óbitos, em sua maioria, estavam relacionadas às doenças do aparelho digestivo, às doenças infecto-respiratórias, doenças sexualmente transmissíveis e males de dentição. Sem chegar a um consenso, alguns médicos acreditavam que a formação da primeira dentição podia causar a morte da criança, outros postulavam ser esse tipo de informação bárbara e sem nenhuma base científica.12
No discurso e na prática médica nos anos de 1900 a 1940 identificamos: "...a existência de uma medicina imprecisa e imatura no que tange ao diagnóstico e cura das doenças infantis".12:160
O livro de registro de expostos do asilo Nossa Senhora da Misericórdia, identifica que 21,2% dos óbitos ocorreram por causa ignorada, correspondendo à primeira causa das mortes de crianças, seguida pelo raquitismo 16,85%. A gastroenterite ocorreu em 20,8% das causas de óbitos, sífilis em 11,5%, pneumonia em 7,9% e a dentição 2,7%.
As rodas dos expostos das misericórdias amparavam em princípio as crianças nos seus sete primeiros anos de vida. Depois dessa fase, as meninas que não haviam encontrado acolhimento em casas de famílias deveriam ser transferidas para os Recolhimentos (instituições que tinham por finalidade abrigar e educar as meninas abandonadas após os sete anos), onde ficariam à espera de uma colocação familiar ou do casamento.
Entretanto, as expostas da misericórdia da Bahia não foram recebidas nas instituições de Recolhimento, pelo menos em todo o século XVIII. A maioria dessas crianças ficaram desamparadas, vagando pelas ruas da cidade.
Apenas em 1801, apareceram os primeiros registros de expostos da Roda encaminhadas para o Recolhimento. Até as primeiras décadas do século XIX, as crianças - tanto as da Rodas de expostos como as do Recolhimento - não receberam nenhum tipo de instrução sistemática. Essas casas funcionavam apenas como abrigos, sem nenhuma outra atividade educacional, religiosa ou profissionalizante estabelecida.
A partir da Segunda metade do século XIX, o sistema de internamento das meninas, passou a cuidar da educação elementar e da educação profissional, além da formação moral e religiosa. Por vezes incluía-se o ensino de matérias próprias da educação das elites, como o ensino do francês, do alemão, de piano, de canto, de desenho.12
Com as primeiras leis em favor da abolição da escravatura, e a própria extinção do sistema escravista no País, higienistas, juristas e o governo se aliaram à sociedade para fomentar a criação e a manutenção dos estabelecimentos de proteção e de educação das meninas órfãs e desvalidas. Esses estabelecimentos passaram a ser vistos como a salvação das famílias bem postas: tornaram-se o celeiro para se abastecerem de domésticas bem preparadas, a bom preço ou mesmo gratuitamente.11
O destino dos meninos abandonados na Roda dos expostos, não foi melhor do que a das meninas. Aos três anos, quando voltavam das casas das amas-de-leite, enfrentavam problemas piores. Por não serem alvo das mesmas preocupações com a honra e a virtude, como no caso das meninas, raras foram as instituições criadas para protegê-los, antes de meados do século XIX. Mesmo assim estas instituições recebiam número limitadíssimo de meninos oriundos das Casas dos Expostos.
Dos 112 expostos lançados na roda de Salvador em 1813, apenas seis foram devolvidos aos pais, que vieram buscá-los. A maioria tinha sorte cruel. Crianças negras e mulatas foram sutilmente transformadas em escravos pelas próprias amas, passado o período de amamentação, enquanto recebiam estipêndio da Roda dos Expostos.11
Não era raro também, os senhores usarem do expediente sagaz de levar para a roda um bebê escravo e, depois de passada a fase de maior mortalidade, reclamar o escravo de volta. Para a maioria dos expostos nas rodas - que sobreviveram ao genocídio dos primeiros anos de vida e cujos pais nunca mais cuidaram de sua existência, ou que nem se quer puderam permanecer com suas amas-de-leite - poucas eram as saídas que se apresentavam em suas vidas, além da rua, do desamparo ou da morte.
Depois que se criou a Casa dos Expostos em Educação, na roda de Salvador, os meninos passaram a ser encaminhados para lá, onde deveriam permanecer até por volta dos doze anos. Esta instituição empenhava todos os esforços para que os meninos encontrassem uma família onde pudesse trabalhar e ser amparados.
A partir do século XVIII, surgiram propostas e iniciativas de caráter caritativo para amparo dos meninos expostos. O primeiro colégio interno destinado a atender meninos órfãos e desvalidos foi a Casa Pia e Seminário de São Joaquim, na cidade de Salvador.11
Mas, o que sabemos das crianças e adolescentes negros que não foram abandonados? Como viviam e que tipo de violência sofriam?
Entre os negros cativos do Brasil, predominavam os adultos, pouco dos quais chegavam aos cinqüenta anos. As crianças representavam apenas dois entre cada dez cativos. Dessas crianças, poucas chegavam à idade adulta, já que dois terços morriam antes de completar um ano de idade e 80% até os cinco anos. Aqueles que escapavam da morte prematura, iam, aparentemente perdendo os pais. Antes mesmo de completarem um ano de idade, uma entre dez crianças já não possuíam nem pai nem mãe. Aos cinco anos, metade era órfão e aos 11 anos, oito em cada dez crianças eram completamente órfãos.13 O autor, ainda informa que a criança escrava sobrevivente não ficava só, já que fazia parte de uma rede de relações sociais escravas, em especial as do tipo parental. Provavelmente ele teria irmãos, tios, primos, em alguns casos avós que poderiam viver dentro ou fora de seu plantel. Mas órfãos ou não o que se tem a certeza é que a vida dessas crianças era um verdadeiro calvário. Este ressalta a comparação do tormento da cana-de-açúcar batida, torcida, cortada em pedaços, arrastada, moída, espremida e fervida como o cotidiano de escravos pais e escravos filhos que também haviam de ser batidos, torcidos, arrastados, espremidos e fervidos. Era assim que se criava uma criança escrava.
Entre os quatro e os onze anos de idade, a criança escrava ia tendo o tempo paulatinamente ocupado pelo trabalho. Aprendia um oficio e a ser escravo. Por volta dos sete anos um escravo era cerca de 60% mais caro que o escravo de 4 anos, e por volta dos 11, chegava a valer até duas vezes mais. Aos 14 anos a freqüência de garotos desempenhando atividades, cumprindo tarefas e especializando em ocupações era a mesma dos escravos adultos. O adestramento da criança se fazia pelo suplício cotidiano, feito de pequenas humilhações e grandes agravos. Além de assistirem constantemente o espetáculo degradante das punições exemplares que eram reservadas aos escravos adultos; muitos deles, seus próprios pais, e/ou parentes próximos.13
A vida das crianças escravas, tanto as que conviviam mais próximas às famílias do senhor ou as que trabalhavam nas lavouras, era repleta de sofrimentos. Estas crianças, muitas denominadas de "leva-pancadas", além de sujeitarem-se a trabalhos prematuros desde a mais tenra idade, desempenhavam ainda a função de animais de estimação. Por valerem pouco no mercado de capital da época, atraíam para si a violência do conjunto social e eram vítimas de sevícias. Os "leva-pancadas", a despeito de servirem de brinquedos dos "sinhozinhos de engenho", serviam também como instrumento sobre os quais libertava-se o ódio, frustrações e os desajustes, presentes em mentes doentias de alguns proprietários de escravos do passado.14
Além da violência física a que as crianças e os adolescentes eram submetidos, as relações sexuais entre adultos e crianças, na época colonial, não eram conduta das mais condenadas. Mesmo quando realizada com violência, a pedofilia, em si, nunca chegou a ser considerada um crime específico, nem mesmo por parte da Santa Inquisição, como é vista em pedofilia e pederastia no Brasil antigo.15:60
Quando nos voltamos à compreensão da história da infância e adolescência pauperizada no Brasil, verificamos que as contradições com as quais a população se defronta são muito mais complexas e antigas do que se imagina. Através da historicidade desse fenômeno, verificamos também que os índios, as mulheres, os negros e as crianças sempre surgem como vítimas dos homens, que, não por coincidência, são representados pelos brancos. A história da infância "...fez-se à sombra daquela dos adultos. Entre pais, mestres, senhores ou patrões, os pequenos corpos dobram-se tanto à violência, à força e às humilhações, sendo amparados apenas pela ternura e pelos sentimentos maternos".16:7
Vale salientar que esta ternura atribuída às mães faz parte de uma história mais recente, e para alguns segmentos sociais.
Desta forma, observamos que, desde sua formação, firma-se na sociedade brasileira um sistema de poder que, germina da simbiose patriarcado-racismo-capitalismo. Um poder que define-se como "macho, branco e rico" e ao qual pode-se agregar o qualificativo de adulto. Um poder que, mesmo sendo diferente dos outros três por não implicar contradições e antagonismo explicita-se através de "uma hierarquia, na qual o poder adulto destina-se a socializar a criança, a transformá-la em adulto à sua imagem e semelhança".17
Atualmente, no Estatuto da Criança e do Adolescente, Art. 5º Das Disposições Preliminares, a violência impetrada a esta faixa etária é entendida como uma violação de seus direitos: "Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais".18:14
No entanto, como no passado colonial anteriormente descrito, apesar da lei, ainda hoje no Brasil, crianças e adolescentes, principalmente as negras, continuam sendo vítimas de um sistema social discriminatório, sendo abandonados à própria sorte, negligenciados, espancados e assassinados em seus lares, nas ruas ou nos estabelecimentos em que são recolhidos, quando infratores. E até, no extremo limite da perversidade, da loucura e da ignorância, sacrificados em rituais religiosos. Assim, muito se tem falado, sem dúvida, mas pouco de efetivamente produtivo se tem feito no combate à vasta gama de violências a que estão sujeitos as crianças e os adolescentes brasileiros.



CONFIRA O TEXTO NA ÍNTEGRA
Texto contexto - enferm. vol.14 issue4; Abstract: S0104-07072005000400019

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